sexta-feira, 17 de agosto de 2007

*MERCADO** DE SAÚDE E FUNDAÇÕES PUBLICAS

*José do Vale Pinheiro Feitosa

Pensadores da Escola Nacional de Saúde Pública e o Ministro José Gomes Temporão deram-me um nó amplo. Comprometeram- me o pensamento, a iniciativa e o verbo. Tudo devido as Fundações Estatais e ao respeito, quase doutrinário, que tenho pela instituição e pelo Ministro.Hoje mesmo um funcionário público (sem mais nenhuma convicção de Servidor Público), na página de opinião de o Globo, usando o ministro Temporão como escada, desanca a carreira pública para médico.
Desanca o Regime Jurídico Único, sua estabilidade no emprego e na renda pós-aposentadoria. Jerson Kelman, do alto de sua cadeira de Diretor da ANEEL, frente a um oceano de oportunidades no futuro não muito remoto, usa os retalhos do pensamento para construir uma estátua de sucata em metais. Existe tanta relação entre estabilidade e acomodação, quanto entre guerra e prosperidade. Existe tanto amor entre predadores, quanto a insustentável leveza da renda de Servidores Públicos após sua aposentadoria.
Isso é o que o pensador Português, Boaventura Sousa Santos diz em recente artigo para o site Carta Maior: "*Vivemos um tempo em que a estabilidade da economia só é possível à custa da instabilidade dos trabalhadores, em que a sustentabilidade das políticas sociais exige a vulnerabilidade crescente dos cidadãos em caso de acidente, doença ou desemprego." *
Deixe-me aclarar as posições históricas e compreendam- me, mesmo que em seus lábios surjam uns risos sardônicos que merecem os dinossauros de uma sociedade justa. Quando estudava medicina, freqüentava uma cadeira de Clínica de Doenças Infecciosas e Parasitárias (medicina da saúde pública), militava e fui trabalhar naquilo que acreditava. E é verdade, acredito e luto, e milito por um futuro melhor. Por um mundo que não é igual ao que é hoje, mas dele deverá emergir. Não procuro o céu, apenas busco a terra onde vivo.
Quando me associei ao chamado Partido Sanitário, ao pensamento socialista e à luta trabalhista, o fiz porque acreditava que a raiz dos problemas de saúde estava no modo como a sociedade brasileira produzia, distribuía e consumia suas riquezas. Quando hoje me mantenho na mesma trilha, é que a vida e a experiência acumulada, os retalhos e sucatas do dia-a-dia, este amontoado de lixo ideológico e medidas da moda e de referências internacionais, não me deram catarata na visão. Sei o quanto a realidade hodierna é um fabuloso universo em vias de um empurrão para se esfumaçar.
A realidade não é sólida, ela está preste a "se desmanchar no ar". Vou fazer o meu papel e logo garanto, não sou apenas um, somos tantos. E tantos que atéme importa a rima do Vinicius de Moraes: tantos, Maestro Moacir Santos. E no embalo: geógrafo Milton Santos. Acrescento ao que acreditava então e hoje acredito ainda mais. O papel do médico numa sociedade justa, em que a própria capacidade de prevenir e recuperar-se de doenças seja um norte civilizatório, não pode e nunca poderá ser objeto de mero jogo exploratório de mercado.
A medicina resumida a mero consumo e a valores do jogo de mercado, com suas fantasias e fetiches, é um anticlímax para a evolução do conhecimento e da própria ciência médica.Na verdade é um futuro que já contamina o centro do capitalismo, o grau de dependência econômica das pessoas aos medicamentos de uso contínuo, as órteses, próteses, cirurgias e outras novidades serão de tal volume que pagar impostos ao estado Burguês será uma obrigatoriedade de faz de conta.
Portanto não acredito que a evolução da Administração do Sistema Único de Saúde será através do médico liberal e nem do sistema privado. Não acredito por uma questão em que a saúde não é meramente assistência médica e o SUS (universalidade, equidade, integralidade) terá uma contradição permanente com o sistema econômico vigente. Neste sentido a simples transferência dos conflitos trabalhistas do ABC paulista para o seio do Servidor Público (Funcionalismo) e da modalidade de relação não ideológica com a saúde e sim com a relação de exploração Estado e Trabalhador, foi um erro central a justificar a raiz desta ampla "privatização" do sistema de saúde.
Claro que não poderemos esquecer a enorme influência que teve nisto tudo a chamada "Saúde Complementar" que venderia leitos ao sistema público e terminou porser 80% dele. Aliás o Partido dos Trabalhadores deve refletir muito sobre o papel deles na saúde pública nacional, ao mesmo tempo fiéis lutadores pelo SUS e naoutra ponta exímios negadores de sua consolidação. Todos sabemos que a evolução dos Planos de Saúde se sustenta, também, pela mentalidade sindical da cidade de São Paulo, cidade que retêm 43% dos beneficiários dos Planos de Saúde. Não nos surpreendamos que um parlamentar ou senador do PT venha a se preocupar como o Estado poderá remunerar planos de saúde para aposentados em detrimento do SUS.
Não nos surpreendamos porque o "objeto de desejo" desta luta sindical não socialista e de resultados (incluindo a Força Sindical em parte albergada no PDT) é a reivindicação de PLANOS DE SAÚDE. E, claro, nesta esteira, de escola privada e previdência privada.Prova.
Vejamos a dificuldade das lideranças do PT e do PDT de fazer frente a modelos que privilegiam as relações mercantis no SUS em detrimento do modelo ideológico e universalista.
O ministro Paulo Bernardes ao comentar a reação de certos segmentos do PT à criação das Fundações, se referiu ao próprio partido como detentor de posições defasadas em dez anos.Imagine o seguinte: um partido que não tenha uma idéia capaz de ultrapassar dez anos deve ser uma "empresa partidária", pois partido pensam cem anos à frente. Pode ser que, por outro lado, o próprio ministro Bernardes seja um "modista" da "reengenharia".
Escola Nacional de Saúde Pública e o Ministro Temporão me deram um nó, pois deles esperaria a ousadia de aprofundar a mudança da sociedade capitalista, que foi criativa em acumular riquezas e a promover ampla exclusão social. A discutir temas como o caso simbólico da indústria farmacêutica, do aborto, da desgraça social da menor grávida, do alcoolismo, da licença maternidade e outros temas que penetram na contradição do capitalismo.
Mas gostaria que não abandonassem a necessidade de manter em hegemonia o pensamento original da Partido Sanitário e isso se dará com o debate sincero da produtividade em termos da melhoria da sociedade e não damelhor acumulação de numerários; ocorrerá se somarmos continuamente Servidores Públicos, treinando-os, refletindo a realidade indutora de doenças, refletindo a exploração econômica da prevenção de doenças e recuperação da saúde.
E, principalmente, entendendo a parte que cabe ao Servidor nesta imperfeição, ampla e generalizada, do "mercado de saúde".Enfim, espero que a ESQUERDA na saúde promova uma ampla profissionalização dos gestores hospitalares e de saúde, privilegie a carreira do Servidor Público,reduzindo o perfil de relação de mercado entre os profissionais de saúde e o cidadão. Ou seja, que o norte para ser servidor da saúde seja a relação profissional e o cidadão e não a de médico valorado e o cliente explorado.Ao invés de reduzir a reflexão sobre a realidade sujeita meramente ao mercado, amplie-se a reflexão do sujeito que observa o impacto do mercado sobre a saúde pública e se coloca ideologicamente na perspectiva humanista.
Aliás é preciso entender que a Constituição quando criou o RJU ajustou isso: quem quiser ser funcionário público, terá estabilidade no emprego e na renda, na dignidade, terão obrigações públicas e históricas com a cidadania. Por isso é que os argumentos reacionários atingem justamente essa equação, pois o norte dos neoliberais é o das relações de mercado.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

TENDÊNCIAS GLOBAIS - Boaventura de Sousa Santos

A flexinsegurança

Vivemos um tempo em que a estabilidade da economia só é possível à custa dainstabilidade dos trabalhadores, em que a sustentabilidade das políticassociais exige a vulnerabilidade crescente dos cidadãos em caso de acidente,doença ou desemprego.
Esta discrepância entre as necessidades do "sistema" e a vida das pessoas nunca foi tão disfarçada por conceitos que ora desprezamos que os cidadãos sempre prezaram ou ora prezam o que a grande maioria doscidadãos não tem condições de prezar.
Entre os primeiros, cito emprego estável, pensão segura e assistência médicagratuita. De repente, o que antes era prezado é agora demonizado: a estabilidade no emprego torna-se rigidez das relações laborais; as pensões transformam- se na metáfora da falência do Estado; o serviço nacional desaúde deixa de ser um benefício justo para ser um custo insuportável. Entre os conceitos agora prezados, menciono o da autonomia individual.
Este conceito, promovido em abstrato para poder surtir os efeitos desejados pelo"sistema", esconde, de fato, dois contextos muito distintos: os cidadãospara quem a autonomia individual é uma condição de florescimento pessoal, abusca incessante de novas realizações pessoais; e os cidadãos para quem aautonomia individual é um fardo insuportável, que os deixa totalmente vulneráveis perante a adversidade do desemprego ou da doença, e que, em casos extremos, lhes dá opção de escolher entre os contentores do lixo do bairro rico ou pedir esmola nas portas do metrô.
No domínio das relações laborais está a emergir uma variante de conceito deautonomia. Chama-se flexigurança. Trata-se de aplicar entre nós (em Portugal) um modelo que tem sido adaptado com êxito num dos países com maior protecção social da Europa, a Dinamarca.
Em teoria, trata-se de conferir mais flexibilidade às relações laborais sem pôr em causa a segurança do emprego e do rendimento dos trabalhadores. Na prática, vai aumentar a precarização dos contratos de trabalho num dos países na Europa onde, na prática, é já mais fácil despedir.
Não vai haver segurança de rendimentos, porque, enquanto o Estado providência da Dinamarca é um dos mais fortes da Europa, o nosso é o mais fraco; porque o subsídio de desemprego é baixo e termina antes que o novo emprego surja; porque o carácter semiperiférico da nossa economia e o pouco investimento em ciência e tecnologia vai levar a que as mudanças de emprego sejam, em geral, para piores, não para melhores, empregos; porque a percentagem dos trabalhadores portugueses que, apesar de trabalharem, estãoabaixo do nível de pobreza, é já a mais alta da Europa; porque o fator de maior vulnerabilidade na vida dos trabalhadores, a doença, está a aumentar através da política de destruição do serviço nacional de saúde levada a cabo pelo Ministro da Saúde; porque os empresários portugueses sabem que dos acordos de concertação social só são "obrigados" a cumprir as cláusulas que lhes são favoráveis, deixando incumpridas todas as restantes com acumplicidade do Estado.
Enfim, com a flexigurança que, de fato, é uma flexinseguranç a, os trabalhadores portugueses estarão, em teoria, muito próximos dostrabalhadores dinamarqueses e, na prática, muito próximos dos trabalhadores indianos.

* Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).